Na madrugada em que a estátua do bandeirante Anhanguera – vulgo Diabo Velho – foi explodida, Fausto K estava bem longe de Goiânia. Isto pouco lhe serviu como álibi. A polícia admitia não ter indícios para incriminá-lo diretamente – era de fato impossível que K tivesse participado de corpo presente do “atentado” estando com domicílio comprovado na Cordilheira dos Andes. Os agentes da Lei e da Ordem se apressaram em botar K no topo da lista dos suspeitos de serem os “mandantes intelectuais do crime”. As forças de repressão usavam e abusavam do termo “terroristas” para se referir a K e seus “subordinados”, de maneira que a mídia estava repleta de acusações contra Fausto e sua “gangue de depredadores”.
Posso atestar, como amigo que conviveu com ele por anos, que não havia ninguém mais arredio do que Fausto ao armamentismo e às propostas de “soluções truculentas para problemas complexos”, como ele gostava de dizer. Tenho certeza: ele nunca disparou um único tiro com arma-de-fogo, nem sabia como fazer bombas caseiras. Não me recordo de que jamais tivesse sido acusado de violência contra pessoas ou bichos antes daquela noite fatídica em que foi metamorfoseado, na opinião pública manipulada pelo gorilismo repressor, em um “inimigo do Estado”.
Famintos por devorar um bode expiatório, ainda que mal passado, as autoridades correram a escolher Fausto K para servir de churrasco. Convocaram as câmeras para registrar seu devoramento: a picanha humana seria sorvida pelas massas na TV e nos feeds, entre anúncios de cerveja e video-cassetadas pandêmicas. A caçada e sacrifício de K era mais uma atração do grande reality show que as platéias adoravam, bestializadas pela boçalidade-do-mal, enquanto enviavam à TV Goebbels e ao SSBT os vídeos toscos de TikTok com suas trapalhadas domésticas, sedentos por sua ração de 15 segundos de fama. Diziam os magnatas da mídia que era preciso muito alívio cômico nesta nova época de confinamento que se instaurara desde 2027 com a nova pandemia.
Este era o Brasil pós-Bolsonaro mas ainda sob sua sinistra influência póstuma. Após o suicídio de Jair, em Haia, no ano de 2025, na véspera de receber o veredito “culpado por crimes contra a humanidade”, o Brasil não se livrara tão cedo do espectro de seu falecido presidemente. Com a covid27, nova e devastadora onda de negacionismo varreu o país e veio acompanhada pela criação, em âmbito nacional, da Polícia do Passado, a POPASS, devotada à preservação das sacrossantas lendas nacionais. Estas estátuas eram tidas como essenciais para que os cidadãos-de-bem pudessem crer na estabilidade e conservação de instituições tão maravilhosas e impecáveis quanto a Família, o Mercado, a Religião, a Indústria, o AgroNegócio, o Exército.
Dentre as atribuições da POPASS estavam: policiar os subversivos que não acatavam a visão ortodoxa sobre o passado plasmada em objetos monumentais pela cidade. Estes “terroristas”, agentes da desordem e da anarquia, estavam sendo sugestionados pelo Capeta – ou assim pregavam os pastores evangélicos nos programas de TV que batiam em audiência tanto as video-cassetadas quanto o futebol, e que recebiam dinheiro público para enaltecerem a POPASS e demonizarem todos os praticantes de “atentados contra o patrimônio público”.
Com velhas palavras de ordem – “o Brasil para os cidadãos-de-bem, com Deus velando por todos” – marteladas nas orelhas, boa parcela da população, consultada pelas pesquisas oficiais do governo conduzido da junta militar, dizia que direitos humanos eram o “esterco da vagabundagem”. Nada menos que 87% dos entrevistados diziam concordar plenamente com a frase “direitos humanos só para humanos direitos”.
Diante disso o destino de K pareceu-me merecer estas palavras que agora escrevo com meus últimos alentos antes de ser também eu ceifado pela impiedosa indesejada-das-gentes. Meu último ato é esta tentativa, que talvez naufrague, de navegar pelas águas turbulentas de nossos tempos tecendo este escrito que quer deixar um último testemunho em favor de um injustiçado! Camarada Fausto foi acusado de um atentado contra a “estátua sagrada do civilizador”, como bradavam telejornais e manchetes garrafais dos internéticos portais, supostamente “fiéis aos fatos”. Porém nós, seus amigos, sabemos o quanto tais narrativas oficiais chafurdaram na calúnia. A proliferação virótica do fake serviu a uma odiosa cruzada para que K fosse esmagado como uma barata asquerosa, um inseto que a Civilização Cristã Ocidental precisava exterminar com um inseticida fatal e dizendo num coro uníssono: “Glória a Deus!”
Na fatídica noite em que virou escombros a estátua do notório escravocrata Bartolomeu Bueno da Silva, vulgo Anhanguera, Fausto K estava na capital do Chile, onde morava desde julho de 2029. Havia saído do Brasil, como era bem notório – fato narrado em verbete da Wikipédia – após ter contraído o vírus Sars-Cov-3. Os historiadores do futuro talvez queiram saber que, segundo a OMS, apenas no período entre 2027 e 2031, este coronavírus mutante já havia feito 10 milhões de vítimas fatais apenas na América do Sul – e 9 milhões dos óbitos eram de brasileiros. Fausto K, após ser infectado, caiu doente e foi intubado. Foi a segunda e mais dura de suas vivências de quase-morte. Quase morreu sufocado e virou nada em meio a um inferno terrenal causado pelo desmonte do SUS e pela sombria governança necroliberal. Depois de ser obrigado a tragar experiências tão indigestas, K achou que tinha tido o suficiente desta “pátria mãe gentil”. Decidiu-se pelo exílio em um manifesto que trazia frases grandiloquentes como: “Estou doente de Brasil. Vazar deste magma pestífero vai ser pra mim salutar pra conseguir sobreviver.”
Quando pegou um vôo de Goiânia pra Santiago, os termômetros no aeroporto Santa Genoveva marcavam 46ºC. Este era o novo normal nos últimos 5 meses. A “anormalidade” agora consistia nos dias em que a temperatura cruzava o limiar dos 50ºC e os necrotérios enchiam-se com os corpos dos que não resistiam à onda de calor somada à mais grave estiagem do século. Muitos cidadãos fingiam que tava quase tudo normal e aglomeravam nos bares pra beber cachaça vendo os jogos.
Fausto K vivia, na madrugada fatídica em que Anhanguera ardeu, na Santiago que surgira da Constituinte de 2021. Uma década depois, no ano de sua “desaparição”, a capital chilena era a única metrópole sul-americana governada por uma mulher comunista, a ex-líder estudantil Camila Vallejo. Ela era a líder de uma nova juventude radicalizada pelas agitações dos movimentos anarquistas, queer, ecosocialista, confluindo com as novas revoltas dos pinguins. Galvanizado por tantas inovações políticas, K aderia cada vez mais a uma militância cyberpunk que apostava em elos de ligação entre ruas e redes para partejar de uma realidade social menos sórdida. Uma nova geração mostrava-se comprometida com o enterramento de todos os resquícios do Pinochetismo e do Bolsonarismo, engajada na missão de ser a coveira da ditadura e seus avatares. Explodiam discursos inflamados nas assembléias populares de rua, nas okupas e protestos, com alta adesão das massas. O comunismo dos Andes, prometendo um Matriarcado Pós-Capitalista, havia se tornado o epicentro de um caldeirão de inovações transgressoras.
Devemos sublinhar desde já, porém, que as práticas anarcoterroristas que explodiam por toda Santiago não ajudaram o processo de K no Brasil. Sem possibilidade de controle por parte das autoridades, explodiam no Chile as estátuas de generais que as Comissões da Verdade haviam revelado terem sido executores de uma máquina mortífera de tortura, silenciamento e execução de antagonistas políticos. As latas de tinta vermelha tinham bombado de vendas na última temporada e não era porque os cidadãos estavam querendo deixar os muros de suas casas mais escarlates. As estátuas de opressores estavam sendo banhadas pelo vermelho-sangue como uma tintura de protesto. Réplicas de crânios estavam sendo adicionados a vários “monumentos públicos”, na sugestão de que os sujeitos ali celebrados haviam chegado à fama supostamente imorredoura apenas pois subiram ao topo pisando numa montanha de crânios de compatriotas.
Os alvos principais dos rebelados eram as estátuas daqueles que participaram da maquinaria de produção de desaparecidos – um eufemismo para o terrorismo de Estado que culminava na desova de cadáveres tornados inencontráveis. A própria Constituição Cidadã Chilena de 2021 proibia, de maneira explícita e veemente, a construção de qualquer monumento público celebrando a memória de Augusto Pinochet ou quaisquer de seus cúmplices. De modo que os manifestantes se sentiam justificados em sua radical re-fundação de Santiago em outras bases, não mais tendo como fundamentos o supremacismo branco, a ideologia escravocrata ou o elitismo defendido manu militari pelas elites-do-atraso em suas malcheirosas fardas.
As autoridades de Goiânia exageravam ao atribuir culpas imensas a Fausto K. também pelas ocorrências chilenas. Sabemos que sua única contribuição significativa ao movimento de lá foi ter proposto um slogan a ser pixado e que acabou viralizando nos muros, após ser devidamente vertido ao espanhol: “não acreditem em contos de fardas”.
Ainda que ele tenha divulgado a frase, K sempre forneceu a fonte, do jeito cabeçudo que tinha de apontar referências bibliográficas pra tudo, até mesmo quando citava um verso de um rap ou um pixo das perifas: em uma matéria que saiu na imprensa de Valparaíso, onde os grafiteiros também exortavam seus condidadãos a não terem credulidade no que contam os fardados, K eximiu-se da autoria do mote e a atribuiu à comunidade paulista de Paraisópolis, “expressando-se após ser vitimada por chacina policial”. K elogiou a “poesia dos muros” onde estavam sendo plantadas as “sementes de uma subversão disseminada com justiça pelos condenados-da-terra, que sacavam vozes e sprays-de-tinta, insurgindo-se contra todos os malefícios oriundos de fé demais nos contos de fadas – digo, de fardas.”
Este breve relato sobre a queda em perdição de K aos olhos da sacrossanta lei do burgo ainda não revela tão bem o caminho prévio que conduziu Fausto da sala-de-aula onde trabalhava na direção de tornar-se caça da polícia, com se fosse um perigoso serial killer ou um cão raivoso infectado com o vírus que causaria o apocalipse zumbi. Mukasonga, minha cara, não é só aí em Ruanda: também no Brasil pessoas são tratadas como se fossem baratas. Esta é a história de um professor que se metamorfoseou em barata na ótica-de-mula dos opressores. Que virou alvo do inseticida segurado pelas mãos dos que lambem as botas de velhas estátuas estáticas. Este é o estranho conto de um “novo normal” onde fardas impõe novas fogueiras aos hereges que perpetraram violências imperdoáveis… contra a pedra.
Fausto K., vejam só, antes de virar uma barata foi professor. Começou a descobrir, conforme se instruía, que educar de verdade significa questionar os modelos velhos e caducos de escola – aquela onde as celas-de-aula servem para impor aos estudantes-detentos o confinamento nos limites impostos pelas grades disciplinares. Sentiu ruir, após ter contato com a Pedagogia do Oprimido, qualquer adesão sua ao modelo da escola-banco, da escola-quartel, da escola-prisão. Foi rompendo com a concepção autoritária de um professor que é unilateral, antidialógico, mandão, metido a todo-poderoso.
Enquanto estudante, K já se rebelava contra aquela concepção que depois, quando se transformou em educador, continuaria combatendo de maneira afrontosa: a falsa noção de alunos sem-luz, ignorantes e toscos, presos numa caverna de preconceitos, que devem ficar quietinhos e imóveis, detrás de muros e grades, vigiados por câmeras, punidos com palmatórias por seus maus comportamentos, enquanto são ensinados a obedecer. Alunos nas cabeças de quem o professor sabe-tudo faz depósitos e transferências de seu transcendente saber em sentenças como: “decorem pra prova, cambada: o Brasil foi descoberto em 1500 – e graças a Deus tivemos o benefício de sermos colonizados por europeus muito sofisticados e civilizados. Eles conheciam a imprensa, a bússola e a pólvora, pessoal! Como eram mais evoluídos que aquele bando de índios pelados que aqui estavam, e que cometiam todos os dias o crime de paganismo ao ignorarem de propósito tudo sobre a Bíblia e nosso senhor Jesus Cristo. Vejam que belíssimas estas estátuas de Colombo e de Cabral…”
K descobriu com gosto a obra de educadores que argumentavam pela descolonização do currículo. Aderiu àqueles pedagogos que reivindicavam a inclusão das vozes subalternas que narrassem a história pelo viés dos vencidos. Assim, de mãos dadas com Benjamin e Brecht, foi questionando na teoria e na práxis todos os elitismos e lorotas que a História Oficial vomita, desocultando estórias antes silenciadas.
Fausto soava a muitos ouvidos como um chato-de-galocha, um intelectualóide que gostava de falar difícil, mas sabe-se que seus estudantes nunca reclamaram de sua falta de intensidade, nem nunca foi acusado de dar uma aula tediosa. Com a voz trêmula, denunciava a história de cumplicidade entre um pensamento eurocêntrico e os genocídios coloniais perpetrados pelas “nações arrogantes da Zôropa” (como ele gostava de dizer de maneira um pouco clownesca).
Fausto K já havia se tornado um paradigma de encrenqueiro na escola em que atuava, o Colégio Elites do Amanhã. Ele havia topado dar aulas ali, apesar da repulsa ideológica muito forte que sentia, pois precisava de grana pra não morrer de fome. Aquela era uma instituição privada, comandada por uma associação inter-religiosa que se declarava ecumênica, mas por esta expressão entendia apenas o seu esforço para conciliar lideranças católicas e evangélicas em seu corpo de diretores e acionistas principais. Todos eles eram criacionistas convictos, devotados a proibir o ensino do darwinismo e do marxismo na escola.
Fausto havia sido contratado para dar aulas de filosofia, mas acabara sendo aproveitado também para lecionar história após o suicídio do Professor Raul, seu antecessor na função. Em uma sexta-feira de calor tórrido, o professor K apagou as luzes, ligou o datashow e começou a projetar fotografias de estátuas enquanto convocava os estudantes a responderem suas provocações.
– Esta aqui é uma estátua que representa o poeta Castro Alves, na cidade de Salvador, que foi a capital de nosso país entre 1549 e 1763. Agora me digam, sem colar do Google, queridos estudantes internautas! Quem de vocês, se fosse visitar a Bahia, pra tomar um banho de sol curtindo os tambores do Olodum, iria tirar selfies na Praça Castro Alves pra depois postar no Insta? Vamos, levantem as mãos! Quem faria isso?
Duas mãos hesitantes levantaram-se, em meio a mais de quarenta outras que permaneceram indiferentes à pergunta enquanto seguiam, com dedos ágeis, interagindo com a touch screen de seus celulares. Até que Rubens Ludovico levantou a voz, querendo fazer piada:
– Mas quem liga pr’esse porra de Castro Naves, ‘fêssor? Eu tiraria selfie é com a Ivete Sangalo…
Após aguardar, sorridente, o fim da explosão de risos da turma, que deixaram Rubens bastante satisfeito com seu bem-sucedido episódio como comediante, Fausto continuou:
– Turma, esta na estátua é Castro Alves – e não Naves, viu ô Rubens! Ele foi um magistral poeta brasileiro do século 19, descendente de escravizados, autor das maravilhosas Espumas Flutuantes! Foi celebrado por muitas correntes literárias e artistas brasileiros que viriam depois – como o Paulo Leminski, ou Gil & Caetano. Castro Alves foi um brasileiro que fez história com apenas 24 anos de vida. E vocês, se morrerem aos 24, vão ter conseguido realizar algo com a vida de vocês que seja tão extraordinário que, mais de um século depois, vão falar sobre vocês na escola?!? Ou a vidinha de vocês vai cair no esquecimento?!? Hein?
Rostos intrigados o miravam, um pouco assombrados com a provocação.
– Vejamos agora outra estátua – disse projetando a próxima imagem – muito conhecida de todos vocês, goianienses. Quem aqui julga que esta estátua do bandeirante Anhanguera, o “desbravador do Goyaz”, é tipo… o cartão postal da capital? Quando aquela tia de vocês vem do interior pra visitar, onde é que ela vai pra tirar umas selfies, hein gente? Este é ou não é um point turístico de Goiânia, galera?
– Ééééé – em coro responderam, e desta vez um tsunami de mãos se levantaram, inclusive a de Rubens, num quase consenso da turma acerca da fama incontestável daquele ponto da cidade onde se cruzam a Av. Goiás e a Av. Anhanguera.
– Sim, gente, é fato: Anhanguera, entre nós, é mais famoso que Castro Alves. Tem muito mais selfie de gente com o genocida do que com o poeta. Mas é certo que seja assim? Que o povo não aprenda sobre as crueldades impostas às populações indígenas e negras pelas Bandeiras? Vejamos agora outras estátuas. Este aqui que vocês estão vendo no slide é o sublime Laocoonte, no museu do Vaticano, encarando uma treta séria com as serpentes. Este outro, olha que lindeza, é o David do Michelangelo. Aqui, vocês vêem o mundialmente famoso Pensador de Rodin. Já este aqui é o maravilhoso busto de Epicuro e Metrodoro que está exposto no Louvre, em Paris. E esta aqui… gente, esta coisa horrenda, esta estátua feiosa pra caramba, este atentado contra a arte cometida por alguém que não merece o título de escultor, é o Borba Gato lá de São Paulo. Segurando uma escopeta… igual o Anhanguera. Gente, às vezes penso que a única homenagem que o Borba Gato e o Anhanguera merecem é esta mesmo: serem representados por artistas medíocres de maneira tão feia como se fossem o bandeirante fosse uma hiena chupando manga. E que segura um revólver pra posar de Rambo.
O que se seguiu foi uma cena que surpreendeu muito a K. Ele me contou, com a franqueza que só anos de amizade consolidaram, que nestes momentos de exaltação ele estava “se achando” o professor engraçadinho, provocador, capaz de dar aulas dialógicas e de alto impacto formativo. Pensava estar combatendo o tédio através de uma intervenção multilinguística, trazendo poesia, artes plásticas e filosofia para um debate vivo sobre história, representação, linguagem, cidadania etc. Julgando-se o provocador de uma controvérsia sadia, que faria os alunos conversarem acesamente sobre temas relevantes, K logo seria atropelado por um caminhão especialista em esmagar ilusões. Daí nasceu uma de suas frases mais populares, que virou meme e espraiou pelos muros: “A vida é um grande balde de frustrações”.
Infelizmente, K descobriu que quase nenhum aluno achou graça de sua piada com Borba Gato e Anhanguera. Tirar selfie com a Ivete Sangalo foi tido como um grande feito humorístico, mas ofender os nobres homens como se fossem hienas chupando manga não gerou muitas risadas. Por parte da maioria da turma, houve um repúdio monumental a esta aula e a frente evangélica da turma, chefiada por Angelina Borba e Rubens Ludovico, puxou abaixo assinado, denúncia ao diretor e campanhas de difamação nas redes sociais.
Até que K acabou sendo despedido da Elites do Amamhã por ter cometido uma grave violação aos direitos humanos dos bandeirantes. Mais que isto, através do noticiário, muitas autoridades ficaram sabendo das posturas subversivas de K, seu marxismo cultural imperdoável, seu caráter de doutrinador da juventude com fins criptocomunistas e aliciadores.
Sem grana, sem emprego, sem amparo de muita gente senão seus poucos amigos, K mergulhou no Maelstrom de uma quase-depressão, onde se debatia numa indignação febril que o levava a escrever longos textões em sua defesa, a maioria deles ignorada por quase todos a não ser sua pequena bolha de convívio. Até que veio a covid27, a internação de K e a surpreendente viralização dos Manifestos Virais – tudo isto abrindo estranhos caminhos que o conduziriam do Cerrado aos Andes.
É sabido que houve, a partir de seu dramático adoecimento com a covid27, um incremento significativo em seus followers: os manifestos que escreveu no hospital viralizaram de maneira surpreendente, tornando-se o fenômeno literário on-line mais “quente” da estação, os chamados Manifestos Virais. Deste “crime”, realmente, Fausto K não poderia alegar inocência. Cuidadosamente coligidos pelo delegado Ermínio Fleudy, estes manifestos agora estavam reproduzidos nos dossiês sobre ele com os quais trabalhava a “inteligência militar” – com o perdão deste oxímoro, afinal é insensatez deste escriba unir os termos “inteligência” e “militar”, tão mutuamente excludentes e tão avessos à mescla quanto o óleo e a água.
MANIFESTO VIRAL #1 – Por Fausto K. [excerto] – Não acreditem nos pregadores do fake que querem fazer crer que estátuas são sagradas. Muitas vezes o passado que estas estátuas celebram, engessado, não merece senão nosso escárnio e escarro. Por que lamberíamos as botas de um gigante de pedra que representa, montado a cavalo ou brandindo uma espada, algum “grandioso herói nacional” que, para aqueles que se dedicam a escovar a História a contrapelo, não passa de um assassino-em-série, de um genocida cruel, de um odiável escravocrata?
Após a madrugada em que o Diabo Velho feito de pedra foi explodido em Goiânia, a caçada a K avançou tentáculos até o Chile. Cooptou delegados e carabineiros numa caçada frenética pelo “terrorista” responsável pelo “tsunami de atentados” contra estátuas. Caíam estátuas de quem perpetrou atrocidades contra os incas em Cuzco. Caíam estátuas de quem massacrou estudantes às vésperas das Olimpíadas na Cidade do México. Eram tingidas de vermelho-sangue estátuas de bandeirantes escravocratas em São Paulo, enquanto seus símiles eram dinamitados por subversivos noctívagos no Cerrado brasileiro. No Cerrado devastado, poucos se importavam com árvores serradas às milhares, com cursos d’água poluídos, com uma seca produtora de desertificação e crise hídrica. O cidadão comum era “instruído” pela TV, pela Igreja e pelo Estado a odiar como se fossem baratas os terroristas que atentavam contra as sagradas estátuas, instado a considerá-los como os principais causadores da desgraça toda.
Pela América afora, estátuas e seus entornos haviam se tornado um campo-de-batalha: defendidas por soldados armados, em alguns locais, eram devastadas por trupes de anarcolíricos ressignificadores do passado. Engrossava o caldo dos ativistas que pressionavam pela extinção da POPASS e que falavam em prol dos escravizados, das vítimas do genocídio, dos esfarrapados pela espoliação opressiva que ocorre pela América-Latina-de-veias- abertas desde a chegada dos nossos supostos benfeitores d’além-mar.
Na madrugada em que a POPASS, em conluio com os carabineiros chilenos, enfim interceptou Fausto K, este pedalava nos arredores do parque Araucano cantando junto com as músicas de Victor Jara e Violeta Parra que tocavam em seus fones-de-ouvido. Foi crivado com 68 balas e em seguida jogaram seu cadáver no Rio Mapocho. No mesmo instante, o delegado Fleudy dormia o “sono dos justos” acreditando-se o representante da mais fina estirpe de cidadãos-de-bem.
Os historiadores Benjaminianos de 2031, diante desta execução sumária e sem direito a julgamento, protestaram dentro de suas bolhas acadêmicas. Enquanto isso, as pregações dos pastores evangélicos e dos generais da ditadura neofascista batiam recordes de Ibope. Algumas dezenas de intelectuais compartilharam em rede social suas notas de repúdio: em um deles, Brum dizia: “que absurdo soturno, que escândalo sombrio para os direitos humanos, quando um professor é tratado como se não passasse de uma barata monstruosa, a ser reduzida a uma papa de ossos e sangue pela bota impiedosa do Bem!”
Artigos argumentavam que Fausto K havia sido morto como Rosa Luxemburgo e Liebknecht em 1919, em crime perpetrado pelos milicianos da Freikorps, precursores da SS nazi. Estabeleciam-se traços de ligação entre Freikorps, Ku Klux Klan e as milícias cristofascistas do Novo Brasil que estavam em violenta cruzada contra os marxistas culturais e os perigosos Paulo Freireanos, inimigos jurados do Ocidente e seu tripé sagrado: Deus, Família, Propriedade.
O que os cidadãos-de-bens de Goiânia não suspeitavam, naquela noite de 2031 em que Fausto foi jogado ao túmulo, quando tinha 36 anos de uma vida que foi brutalmente abreviada, é que este assassinato suscitaria algo mais do que novas explosões de estátuas. Os cidadãos-de-bens logo descobririam que os ventos de Santiago começavam a soprar suas tempestades no Cerrado. Que os atentados contra a pedra agora estavam mais ambiciosos e se tornaram, à maneira de Guy Fawkes, atentados contra palácios. Logo veriam que não eram apenas zoados em memes e trollados por Twitaços, mas que ficavam cada vez mais concretos e próximos os escrachos-de-massas contra as elites em seus bunkers. Logo sentiriam o quão imperfeito era seu aparato imenso de segurança e repressão diante da colméia crescente dos descontentes.
A fúria tinha transbordado e a promessa de Guerra Civil cessava de estar remetida ao futuro: agora os narizes já farejavam-na no ar que fedia a barricadas de pneus incendiados por toda Gayânia em que se bradava “fogo nos racistas!”, “fascistas não passarão!”, e onde os cavalos da polícia militar agora feriam suas patas sobre os estilhaços estourados das vidraças dos bancos e do Palácio Ludovico.
Os revoltosos evocavam o cadáver de K – que apodrecia, comido por peixes, em algum local do fundo do Mapocho – para acender o pavio de uma banana de dinamite nova. Mais explosiva do que aquela que trouxera abaixo o Anhanguera de pedra: fortaleciam-se as afrontas contra os opressores de agora, reconhecidos em sua carnalidade, vulneráveis apesar de seus esforços de se esconderem por trás de vidros blindados e guardas armados na porta dos condomínios.
Nesta guerra, o passado era de uma movência tão espantosa, de uma dinâmica tão imprevisível, além objeto de uma disputa tão ferrenha, que quase não se podia crer que um dia alguém pudesse ter concebido o passado como uma coisa parada, um passado mortinho da silva, um armazém estático onde acumulam-se documentos empoeirados. Os rios de rebeldia dos oprimidos, que morreram sem nome nem glória, apagados da história como ondas depois de baterem nas rochas, estavam sendo descongelados pela morte de Fausto K. Um sujeito que quiseram esmagar debaixo da bota como uma barata acabou compartilhando do destino das sementes que morrem para que possam fazer eclodir, desde seu cerne, uma novidade cujos frutos só o porvir sorverá. Jamais descansaremos sob estas árvores que destas sementes surgirão, jamais poderemos ouvir a contento a polifonia da diversidade humana e celebrar todo o colorido do arco-íris terrestre, mas estamos aqui, vivendo em tempos sombrios mas abrindo caminhos entre ruínas.
O K carnal hoje é um punhado de ossos ainda a ser resgatado do fundo do Mapocho, mas o K que age na cultura é uma ideia à prova de balas, insuflada avante por memes e blogs, pixada nos muros e pintada nos grafites, que embarca em filmes e canções, sendo também transformada na tinta vermelha e nos crânios falsos que decoram estátuas com novos significados. O professor se transmutou em barata e esta em cadáver. Desta improvável metamorfose algo de exuberante está brotando: uma semente viralizável que eu e os camaradas, unidos com o fantasma de Fausto K, estamos plantando desde já, para que pessoas futuras, sob os sóis inclementes do amanhã, possam sorver os frutos e as sombras de que jamais usufruiremos. [FIM]
Ilustração da abertura: Emerson Camaleão.
Txt: Eduardo Carli de Moraes.
Goiânia, Julho de 2021.
“A empatia com o vencedor beneficia sempre os dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.” WALTER BENJAMIN – Teses Sobre o Conceito de História (1940), Tese VII
Saiba mais: “TEMPO: COMPOSITOR DE DESTINOS” (Capítulos 1 e 2)
Publicado em: 26/07/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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